sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Revolta ou Servidão?

“O Homem, que, nesta terra miserável, / Mora entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera” (Versos Íntimos, 1912). Quando, no início do século XX, Augusto dos Anjos alertou para essa peculiar condição humana – a de que o contato interpessoal gera um impulso quase sempre irracional do indivíduo em direção aos mesmos raciocínios(?) e atitudes de outrem –, ele pouco se importava qual a qualidade atribuída a essa “fera”, ou seja, pouco lhe cabia discutir se a fera seria aquela que, atrás das grades da jaula, expõe-se à visitação e observação (dominada, portanto), ou se aquela que, muitas vezes sem mesmo saber o porquê, passa as tardes de domingo a observar (de uma posição dominante) as feras presas. As do primeiro tipo, ao menor rugido insatisfeito, recebem uma quantidade ínfima de “carinho” e alimento, para que continuem a servir sem reclamar por mais algum tempo. As dos segundo, ao oferecer “conforto/pagamento” diário, garantem que a subordinação se perpetue. As metáforas empregadas pretendem dar conta das duas classes sociais às quais Marx atribui responsabilidade pelo movimento perpétuo da história capitalista: o burguês e o proletário.

O burguês, que assiste bestificado o trabalho do outros, não mostra possuir consciência do estado em que se encontra. Ao realizar os mesmos caminhos daqueles que o precederam e dos que ele precede, não parece estar preocupado com as escolhas que lhe são impostas. Instrumento de uma Racionalidade prática, incapaz de traçar o próprio caminho, sente-se feliz. Ocorre, no entanto, que essa felicidade aparente é, como tudo o que possui, comprada, indicada, recomendada pela coletividade em que se inseriu ao sentir aquela “inevitável necessidade de também ser fera”. No caso do operário a situação não parece andar diferente. Estando também servindo a uma lógica instrumental, na condição de mais um instrumento, o indivíduo parece ignorar o estado de dominação que o abate, ou os estados de dominação, quais sejam: a relação com o patrão, e a relação com uma sociedade instrumentalizada, com uma racionalidade que visa a fins instantâneos (de prazer?), como forma de reprodução do ideal capitalista, superior ao indivíduo. Como se vê, a única coisa que parece diferenciar os dois grupos é o poderio financeiro que cada um possui para comprar sua dose de entusiasmo, de felicidade forjada.

Trata-se do apagamento da esfera individual, na atual sociedade todos sentem – dominadores e dominados, na terminologia Marxista – o mesmo impulso a bestificar-se (assim nos lembra Augusto dos Anjos). Desaparece o poder de escolha, dissolve-se o EU em nome de um NÓS que rapidamente é ELE, ao qual todos se devem unir. “ELE”, aqui, representado por qualquer instância responsável por diluir, na prerrogativa do convencionalismo e da instituição como regra, o poder de escolha daquele EU.

Duas são as questões a se discutir. A primeira é quanto à necessidade de um questionamento íntimo, um pensar verdadeiramente transgressor, transcendente, emancipador, mas, sobre isso falo no último parágrafo. O segundo é justamente o que diz respeito à capacidade das convenções, dos papéis sociais, de minar a opção pessoal. Na contramão dessa tendência, é bastante atraente a figura de “Mersault”, o herói absurdo do romance O Estrangeiro de Albert Camus. Diante da sociedade contemporânea e de seus ícones, o jovem parece abster-se à necessidade incessante de escolher, de ser também fera, de aliar-se a essa ou aquela regra social. Não é alienação, mas raciocínio crítico, crença na própria capacidade de pensar o mundo e a vida.

Pensar! Essa talvez seja a resposta. O questionamento interior, aquela “extenuante pergunta íntima”. Mas é difícil se questionar. Eu disse certa vez, aqui mesmo: "Cada nova exigência de concentração é um passo rumo à completa incapacidade em se concentrar". Eis a crise real. E o pensamento como práxis política passa a ser mais uma utopia de um mundo de utopias. Quando não são utopias, são conclusões dadas, não menos prejudiciais. E por esse motivo Álvaro de Campos se revolta: “Não! Não quero nada! / Já disse que não quero nada / Não me venham com conclusões / A única conclusão é morrer” (Lisbon Revisited, 1923). Morrer ou Raciocinar, aquilo que mais convier aos corações enfurecidos e não submetidos, ainda, aos desmandos coletivos. Se o José, de Drummond, pudesse ver dessa maneira, gritaria, gemeria, tocaria, dormiria, cansaria e, enfim, morreria bem; “Mas você não morre, / Você é duro José”. Quanta falta te faz um bom papo de esquina com Mersault. Não para ser como ele, pois que não te faria sentido, mas para ver que “tanto faz” é revolta. Muitas vezes a revolta do possível, a livre, a real exaltação do EU.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Antigando a vida

Viver é passar. É, seu moço. Minha história vai cambaleando, cambaleando, devagar descendo, devagar descendo... E quando estiver descida de todo, eu decido dar fim, seu moço. As formigas trabalhando e minha vida não faz sentido. Aeromoça viajando e minha vida não faz sentido. "José" bebendo na esquina e minha vida não faz sentido, seu moço. Se eu bebo, se eu viajo, se eu trabalho, seu moço, é pra dizer lá em casa que não ando à toa. E eu ando, seu moço. Dizem que esse negócio de eu falar com coisa é porque tô ficando doido. E o senhor é coisa. Mas me diga, seu moço: faz sentido fazer miséria assim de um pobre lacaio como eu? Faz sentido, seu moço? Miséria? Responde não, seu moço. Eu queria acordar longe da vida, passear na estrada longe da vida. Longe da vida, em boa hora, cruz na linha da mão, resposta confusa, rádio, porta e farol, seu moço. Minha crise ia ter desculpa. Me desculpe, mas tem desculpa , seu moço? Tem não, seu moço. Minha vida ia ser estúpida, mas eu ia me dar muito bem com isso. Porque no fundo, seu moço, nós somos todos estúpidos. A vida é música ruim, seu moço. Música de igreja mesmo. Ruim. O senhor me perdoe, mas hoje eu tô triste por demais. Minha filha amanheceu com saúde, mas continua com aquele negócio de que não gosto dela. Faz razão, seu moço? Faz não, seu moço. Eu amo aquela menina. Não fosse ela ainda tá sendo gente, eu já teria me matado. O problema é que a gente não se conforma. Outro dia mesmo eu apaguei a vela com cuspe. Eu sabia que não queimava o dedo. Mas eu não tinha nada pra fazer, seu moço. O senhor tinha? Tinha não, seu moço. O senhor sabe como é. A vida é não ter nada pra fazer. Nada do que a gente gosta. Deixa explicar. Eu, por mim, continuava desinventando as coisas. Eu ia pôr cauda de cometa em cachorro cotoco, seu moço. Eu ia se me deixassem. Eu ia dar uma mão pra João-sem-braço. O senhor ri, né seu moço? O senhor acha engraçado. É porque o senhor existe do jeito bom. Eu não, seu moço. Minha existida tá cada vez pior. Eu tô desistindo de existir. Eu desistia se me deixassem. Mas a vida passa, uma hora ou outra. Viver é passar? É sim, seu moço...

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Image Hosted by ImageShack.usLerdo me trouxe essa história de Ilhéus, quando esteve por lá comprando tempero baiano para contos picantes, os quais não sei se contarei. Diz ele que a ouviu de um senhor que, dizem por lá, conversa com máquinas. E o Lerdo (e curioso) quis saber sobre a vida dele. O nome do senhor é Jorge. Dizem que por lá todo mundo o ama bem, e a alma dele vai viver nas gentes...

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Tropa de Elite: arte realista e fascismo psicológico

Ler Tropa de Elite. A nova profissão do intelectual (e do intelectualóide) é ler Tropa de Elite! Não apenas assistir a Tropa de Elite. Todos aqueles que julgam construir em conjunto a inteligência nacional já fizeram sua leitura. Pessimismo, Brutalidade, Exagero, Crueza, Estereotipia, Reducionismo, etc. Não convém aqui julgar Obra e Críticas, dada a exaustão dos procedimentos. Antes, é preferível se eximir de qualquer tentativa do novo. Não, esta crônica não tem novidades. Para que não se caia pelo efeito contrário em palavras vazias, a intenção é simples: Ler duas leituras já feitas. Longe de procurar rebater a opinião alheia, discordar por discordar, ou amargar na difamação a falta de criatividade própria, a intenção é simples: trazer até aqui dois termos que são usados diariamente para descrever o filme, e, a partir deles, tecer quaisquer comentários a respeito.

O primeiro é
fascismo. Dentre as várias publicações que aderiram com ou sem conhecimento de causa a essa nomenclatura, a que mais parece coerente é a de Marcelo Coelho (Folha de São Paulo, 10/10/07). Ausentando-se de análises da terminologia empregada, pessoas sérias são tentadas a afirmar um posicionamento que não é delas. Chamam fascistas as atitudes de Capitão Nascimento (e por continuidade o diretor do filme!!) sem o menor cuidado em observar o peso que aplicam a essas palavras. Comparam o policial a Stalins, Hitleres, Mussolinis, homens que tiraram a vida de milhões e milhões de inocentes dentro e fora de seus respectivos países, apenas por pensarem de maneira diferente. Fascismo é julgar o diferente sem dar-lhe inclusive a chance de revelar-se. Fascismo é argumentar no vazio contra aqueles que desmascaram um mundo de ovos arremessados janela abaixo. Fascismo é arremessar ovos janela abaixo. Fascismo é dar esmolas e roubar empregos! Marcelo Coelho, no entanto, procurou rever a conceituação. Homem correto e analista clínico do mundo que o cerca, o colunista evitou modismos e trouxe à tona o real fascismo do filme: o psicológico. Se há fascismo, e acredito que sim, é desse segundo tipo. Fascismo enquanto atitude destemperada, agressividade, destrutividade, obsessão pelo direção correta, etc. Um fascismo ao qual todos nós estamos sujeitos, e muito mais está um chefe de um grupo, nosso Capitão, disposto a dar a própria vida em prol da regulamentação de um mundo caduco, deturpado pela ação inescrupulosa de cidadãos responsáveis justamente por fazer o contrário daquilo que lhes é dado fazer: garantir a segurança. Fascista sou eu, é você, são todos aqueles que preferem ver eternamente atrás das grades um "bandido", a dar-lhe as mínimas chances para um re-socialização completa. O que Nascimento faz é simplesmente externar uma raiva, uma revolta que todos nós temos, mas escondemos atrás de nossas mesas de escritório. Enquanto assinamos folhas de demissão, Nascimento dá um tiro. Enquanto rimos das desgraças alheias, Nascimento tortura.

Um outro termo ordinariamente empregado é
realismo. "O filme é muito realista", "um realismo exagerado", "é de um realismo muito forte". Não percebem que "muito", "exagerado", "forte", não são aplicáveis a realismo enquanto manifestação artística. A arte realista é em si a busca pela adequação do objeto-obra ao mundo em torno do artista, numa representação a mais fiel possível. Um romance realista descreve a realidade que cerca a personagem, e a própria e previsível atitude dessa personagem frente ao mundo. Um quadro realista deve ser a perfeita fotografia, deve ser o que é a câmera, deve nos representar aquilo que qualquer olho sadio pode ver, ou deveria. Assim também é para o cinema. Realidade externa é realidade externa. Não há graus, não há níveis de realidade, não dá para ser mais ou menos realista. O que nossos analistas de plantão parecem querer é uma realidade atenuada que não nos ponha em estado de choque, que não nos dê vergonha por sermos o que somos, que não espante turistas, que minta para nós, que fantasie um realidade que é, perdão, apenas real sem adjetivações!

É possível que ambas as designações estejam corretas, e quero acreditar que sim. Mas se o filme é Fascista, é assim por ser Realista. Mostra a agressividade e tendência ao olho-por-olho que há em nossos corações, mas mostra porque é realista. Nos apresenta a raiva antes reprimida, que emana de nós mesmo, mas mostra porque, simples, é realista. Tão Fascista e tão Realista que me proibiu qualquer análise de termos técnicos – a direção extremamente ágil de José Padilha, a atuação como sempre impecável de Wagner Moura, a edição de Daniel Rezende que alterna cenas em ritmo vídeocliptico com outras quase mortificadas pela atmosfera de indecisão e medo que cerca a obra. Temos que considerar, porém, que Padilha, Moura e Rezende voltarão com certeza. Então faremos as devidos e rasgados elogios nos próximo trabalho que apresentarem. Para o momento, é mais sincero cometer a injustiça de falar apenas do filme em si, a obra em si, Fascista, Realista, um primor do cinema nacional!

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Tramas

- Como faremos para que ele não nos veja?

- Relaxe... A essa hora, o máximo que ele consegue é se virar para o lado. Não acorda mais.
- Ainda assim é perigoso, você confia demais na sorte...
- Já te disse, venha comigo, dê a mão aqui... Faz tempo que você não vem pra cá... Estava com saudades.

O diálogo construía-se pé ante pé. A voz, quase a sumir, servia apenas para corroborar um movimento de lábios mais que suficiente. Os gestos diziam o que o coração preferia esconder. Como sentiu falta dele! Todo esse tempo e ela não conseguia esquecê-lo um só dia! E agora estava ele ali. Parecia mais forte, mais saudável. A sua presença preenchia um vazio de há muito.

- Eu ainda te amo, apesar de ter me abandonado, nunca te amei tanto.

Sua ausência era seu charme.

- Silêncio! Se ele acordar estamos fudidos!
- Já disse que ele não acorda. Fica tranqüilo.
- O que você pretende?
- Diga você! É idéia sua...
- Antes tire essa camisa, veja só: ensopada de suor.
- Não havia ar condicionado no ônibus... E ele? Não mudou nada!
- O mesmo mané de sempre. E eu não largo...
- Você não consegue mais... Tem certeza de que isso não é arriscado?
- Se você perguntar novamente sou capaz de desistir...
- Não, não.

Sem que o tal mané soubesse, sua esposa tramava, praticamente aos seus pés. Tramava com aquele que durante tanto tempo, e nada secretamente, dividiu o coração dela. E ainda dividia, se é que não o tomava de arrasto! Estranha fixação das mulheres nos amores antigos. Justo ela, que jurara jamais tornar a dirigir-lhe a palavra, desde o dia em que ele, num rebentando de juventude, a deixou. E agora ali, os dois, ao pé do mané, como prontos a atacá-lo. Ela segurava a faca na mão esquerda. Ele, ainda com aquele rosto jovial que o marcava tanto, não mais voltaria atrás, e mesmo sabendo que seu pai jamais aprovaria... acendeu a luz!

- Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida... E pro Manuel nada?
- Tudo...

Enquanto sua esposa cortava o bolo, Manuel esfregava os olhos... E, numa mistura de surpresa e alegria, disse apenas:

- Filho! Você voltou... Que merda! Odeio festa surpresa, e odeio ser acordado...

E se riram.

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