domingo, 15 de junho de 2008

Manipulação

Começou quando a esposa insistiu na contratação daquela jovem. Acaso têm os jovens efeitos inebriantes? Era de se esperar o resultado. Ele, 45 anos, corpo de 43 com malhação, rico e bonito. Ela, 17 anos, corpo de 17 com malhação, pobre e desinibida. Os primeiros passos foram sorrateiros, como convém quando se quer testar o terreno. Ela passava fingindo desatenção, deixando cair o espanador bem próximo dele, abaixava-se para pegar tomando o cuidado de esbarrar seu quadril no dele, que fingia examinar discos antigos na sala de estar. Depois, vieram os comentários, “nossa, o senhor deve se exercitar bastante, né seu João?”, “gostei do novo corte de cabelo, seu João”. Daí ao flerte despudorado, foram dois ou três olhares desejosos, “duvido o senhor me dá um beijo aqui e agora, o senhor não tem coragem”. Ante a negativa (ele queria, mas não devia), ela apelou “se o senhor não me dá um beijo eu digo pra sua mulher que o senhor anda se esbarrando em mim de um jeito estranho, ela vai ficar uma fera”.

O casamento que fosse para os diabos, agora era com ele, “menina nova não brinca assim comigo”. Homem não tem jeito, aperta que espana. Mas, e isso ele lembrou logo, o sexo tinha se tornado algo casual, praticado religiosamente às sextas-feiras depois da novela. Fazia-se de qualquer jeito e dormia-se muito. “Será que eu dou conta de uma moça assim? Será que eu ainda levo uma garota à loucura? Será?”. Só pagando para ver.

A coisa toda se programou de telefonemas e bilhetes escondidos. Quinta. Ele sairia mais cedo. Ela não iria trabalhar, combinaram um bar afastado, que se freqüentava de gente pouco observadora. E então o motel mais afastado. E assim foi. Aqui entrariam algumas linhas a respeito do resultado entre quatro paredes, mas não faria qualquer diferença para a história. Na saída, o problema: a irmã de sua mulher resolvera levar o novo namorado ao mesmo motel, no mesmo dia, apenas 23 minutos mais tarde.

Claro está o final dessa história. A moça perdeu o emprego, a que ela jamais deu o devido valor, suas intenções eram outras. Resta-nos o senhor João. Diante desse absurdo, a coisa toda nunca fica impune. Advogado famoso na cidade, o caso correu de ouvido em ouvido todo o pequeno município. Os clientes começaram a rarear. Mas esse era problema menor. Com o tempo a fofoca desaquece. O problema foi em casa mesmo. Terminou quando a esposa insistiu na assinatura do divórcio.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Zílio

Quando em meio a papéis sem assinatura e borderôs sem carimbo, uma moça se aproximava visivelmente mais preocupada em discutir os valores de sua apólice de seguros, Zílio suava a fronte branca de homem de escritório. Odiava sem saber o porquê. Tinha um ódio enorme de se saber tímido o suficiente para um primeiro contato com qualquer pessoa do sexo oposto, burro o suficiente para um galantear qualquer, feio o suficiente. Zílio é como eu e você. Só um pouco mais humano, mais honesto, mais tímido, mais burro e mais feio. Se ele soubesse que assim são muitos corações que se disfarçam em rapinante. Creia Zílio, a vida não é realmente algo que compensa a paga de viver.

Apenas Zílio por nome. Jamais se dera ao duelo de morte que o levaria ao fim certo. Aquele ser ignoto das gentes vivera recôndito dentro do mundo. Uns, de pronto, chamariam mentira; outros, melindrados, não acreditariam que pudesse brotar entre as gentes tão honesta figura. Um homem simples que nunca quis ser além de um passageiro de vida, medíocre. Vez ou outra sonhara um sonho amalucado de ser feliz. Mas não é dado ao humano ser feliz. Isso ele aprendera fácil. Aprendera quando descobriu que seria sozinho no mundo. Para sempre.

A única palavra que lhe valera algo em vida foi essa: honestidade. E a ignorância alheia insistiu em nomear estupidez. Zílio não dá passo em falso, não quer o do outro. Sequer imaginava ser de direito o que era seu, por direito: a própria vida. Colocou sempre em mãos diversas o destino que só a ele pertencera. Pobre homem que não falha, o que já é falha grave. Tomou mais um gole antes de pagar mais do que deveria de conta e gorjeta. Percebeu que chovia ainda, adiantou-se até a beira da rua e deu sinal ao táxi. Hora de voltar, obviamente sozinho, ao lar.

Zílio era bom para a família, por isso ninguém lhe dava o devido respeito. Então ser bom é errado nesse mundo? É isso que se recebe por não querer além do próximo metro? Olhavam-no com o devido cuidado, um estranho ser de carne e osso que o mais disparatado espectro ultrapassaria em credibilidade. Não. Não é possível que exista coisa assim num mundo como o nosso. Um homem que trabalhe honestamente, e viva honestamente, insira-se no mercado consumidor honestamente, que honestamente chore em comédias românticas no cinema vazio. Se Zílio entendesse de artes-plásticas, música ou futebol, talvez tivesse consolo. Mas ele é outro.

domingo, 4 de maio de 2008

Juno e a necessidade do simples

O crescente e ininterrupto progresso tecnológico reinante na sociedade contemporânea reverberou há muito nas artes em geral. Andy Warhol pintou latas de sopa em conserva, George Orwell projetou um 1984 alucinado, e o Kraftwerk sintetizou eletronicamente todo o som. O cinema assistiu maravilhado a consolidação da ficção científica, através de filmes como 2001, Blade Runner, O Exterminador do Futuro e Matrix. A capacidade de se renovar tornou-se infinita. Tudo pode e, as aparências assim o dizem, foi tentado. Speilberg confessou o deslumbramento diante das monumentais cenas criadas nos épicos de David Lean; em contrapartida, abusou dos efeitos especiais, destronando o romantismo de outrora. Hoje em dia, tendo em vista a sede mercadológica, tudo deve ser grandioso, megalônamo. Mesmo os melhores filmes centrados na crise individual, tais como Sangue negro, Os sonhadores, Onde os fracos não têm vez, Crash, Amelie Poulin, etc., revestem-se de uma atmosfera grandíloqua. São produzidos de modo a, na maioria das vezes, arrebatar corações e mentes da platéia com explosões, contrastes cromáticos exacerbados, efeitos sonoros e especiais, gritos, tiros, roteiros não-lineares e músicas impactantes. Não é possível apostar que presenciemos o ocaso do cinema centrado no cotidiano tragicômico, que retira do simples o que comove, mas é cada vez mais raro encontrarmos um bom filme que não aposte no cataclismo.

Talvez em reação a isso, vez ou outra, somos brindados com verdadeiras obras-de-arte da simplicidade. Foi assim no ano passado, com Pequena miss sunshine, e agora com o maravilhoso Juno. Este, como aquele, é capaz de despertar em nós o desejo do ombro. A necessidade do outro. Não quero reputar ao filme um caráter evangelizador, que não tem. Sinto apenas que, tendo em si vida, o espectador é incapaz de deixar a sala de projeção sem ser tocado. Apostando em uma linguagem que jamais exagera, o filme despretensiosamente vai derrubando clichês de filmes família. A madrasta (Allison Janney) é uma mulher incrivelmente compreensiva. A gostosa da faculdade não é uma vadia (apesar de ter uma queda pelos professores), a menina grávida não precisa ser a coitadinha da escola. Parece uma preocupação clara da roteirista Diablo Cody: demonstrar que a vida não tem fórmulas prontas, e que é possível fazer rir e chorar sem apelar aos estereótipos sociais costumeiros. Prova disso está no resultado da relação entre a jovem Juno (Ellen Page) e o candidato a pai adotivo Mark (Jason Bateman). Sentimos a cada encontro entre eles que o beijo roubado é questão de tempo, e que os núcleos ruirão diante deste amor proibido. Mas o que seria uma solução padronizada, quando se olha para o cotidiano, torna-se algo dispensável e esse romance de ocasião dá lugar a um terceiro ato singelo e comovente.

O filme conta com uma segura direção de Jason Reitman, que aposta no olhar prudente e confia na força do roteiro. Traz uma trilha sonora maravilhosa e coerente com o fluxo narrativo, em que se destacam Belle & Sebastian, Cat Power, Velvet Underground, Kinks, Sonic Youth, entre outros. Mas esse belíssimo roteiro, a direção justa, e as belas canções, nada disso sustentaria a história sem um elenco que fosse - como já acontecera com Pequena Miss Sunshine - capaz de representar os tipos humanos mais reais e, por isso mesmo, comoventes e fortes. Destacam-se, além é claro de Ellen Page (impecável no papel central de uma dolescente grávida que não aceita a comiseração alheia), Michael Cera (o relutante e tímido adolescente que engravida a namorada sem querer); o sempre competente J. K. Simons (o pai da jovem, alternando momentos de austeridade e bondade na medida do real); o já citado Bateman (formando ao lado de Jannifer Garner um jovem casal muito verossímil em suas inseguranças, diferenças e na vontade de ter um filho). Só mesmo um grupo de atores tão coeso seria capaz de entoar frases banais de modo tão comovente.

E eu acho que é assim que se resumiria Juno: um filme capaz de entoar frases banais de modo comovente. Em determinado momento temos o diálogo: "seus pais devem estar se perguntando onde você está uma hora dessas", e a resposta "acho que não. eu já estou grávida. o que de pior poderia acontecer?". É esse o tom da obra, o deboche, o amor, o medo, a amizade, a compreensão, a afinidade e a dor podem ter a dimensão de um ombro, de uma lágrima. O amor pode ser bobo, sendo lindo. Só mesmo um filme assim, tornaria uma frase como "eu ainda guardo a sua calcinha" a mais singela declaração de amor. Lindo.

sábado, 26 de abril de 2008

Ilusão (Ato II, Cena I)

Ato I, Cena IV.

Abrem-se as cortinas. Sérgio e Ana estão na frente do palco à direita, com as poltronas lado a lado, como em um cinema, a única luz vai em direção ao rosto dos dois, como um projetor. Julio está no fundo à esquerda, com a poltrona de lado, ele parece conversar com alguém que está fora da cena.

Ana (pegando uma pipoca imaginária)

Não gosto de comédias-românticas, não sei por quê. Mas é uma merda. Não que eu esteja reclamando do filme que você escolheu

Júlio (enquanto Sérgio responde ao comentários de Ana com um aceno de cabeça aflito, mastigando pipoca)

Ah! Mãe, sabe como é. Esse negócio de cinema é enrolado mesmo. Tem que começar de baixo. Mas fica tranqüila. O quê? Sim. Sim. Ele é meu amigo, né.

Sérgio (Entre gargalhadas. Júlio finge falar com a mãe e gesticula)

Esse ator é demais, não é? (Ana se assusta). Eu gosto dele desde aquele filme que ele fez sobre os alunos CDFs na faculdade. Como é o nome?

Ana (incrédula)

Deu a louca nos Nerds...

Sérgio

Esse mesmo. Hahaha... Muito bom. Aquela cena do rapaz se masturbando depois de mexer com cola. Hahaha...

Ana

Calma Sérgio! Senão vão expulsar a gente daqui. (Sérgio calando-se assustado)

Júlio

Tudo bem mãe. Assim que eu tiver uma novidade eu te aviso... (olhando o relógio) O pai tá demorando. Ele não continua freqüentando aqueles pulgueiros depois do trabalho, né? (pausa). Igreja? Sei. Deixa de inocência, mãe!

Ana (levantando-se, seguida de Sérgio)

Ainda bem que acabou. Minha bunda já estava doendo. E aí? Gostou?

Sérgio (sem jeito)

Ah... achei legal...

Ana

Onde vamos comer? Tô com fome. Vamos numa lanchonete aqui do Shopping mesmo... pode ser?

Sérgio

Tá bom. Só quero comer alguma coisa.

Júlio (com ar impaciente)

Acho melhor a gente ir jantando. Aquele velho vai demorar. (sai pela esquerda empurrando a poltrona)

Ana (puxando Sérgio pelo braço)

Vem, logo então, gato. Preciso de perguntar uma coisa. (Sérgio parece se espantar)

Todos deixam o palco.

domingo, 6 de abril de 2008

Financiomas

Este é um conto de amor novo-burguês, le nouveau riche des histoires romatiques. Caminhavam de mãos dadas. Dispa-se a noção gloriosa dos que caminham por prazer e romantismo. Feito a falta de recursos, o namorico ia a pé, por não poder ir melhor, fizesse chuva, fizesse sol. E eles gostavam de ir a pé, como gostavam de não poder ir ao cinema porque a câmara-de-ar da bicicleta dele rasgou e, "agora o dinheiro era pra consertar, senão, não dá pra trabalhar amanhã cedo". Tinha que regular e controlar. Como não dava para se fazer muita coisa, sobrava tempo para os carinhos, só para os carinhos, "porque em casa não dá, minha vó tá lá e não tem dinheiro pro motel". E eles vão ficar no carinho, ou vão caminhar.

Um dia ele encasquetou que ia pôr garupa na bicicleta, agora com o pneu ajeitado. Mas a moça não era o que se pode chamar de um símbolo de beleza, e apesar da humildade, notava-se que comia bem, demais. E ela começou a reclamar que "estava doendo a bunda", e chegava aos destinos andando torto. Natural, três quartos dela ficavam para fora da bicicleta, esperando a gravidade fazer marcas vermelhas profundas. Ficava ridícula, digamos assim. O outro problema, é que se ela chegava vermelha e dolorida, ele também. O peso da bicicleta aumentou muito depois que ele instalou a garupa, que vazia era "até levinha". Uma gemendo de dor, o outro gemendo de cansaço, eram uma sensação onde quer que estivessem.

Ele ficou entre trocar o quilo de acém por patinho "só dessa vezinha", ou comprar um bilhete da federal. Como a carne "a gente amacia na pressão", vai de sorte mesmo. Escolheu a sua data de aniversário. E, romântico, a dela. 02-10-25-07. Faltam duas dezenas. 36-45. "O número de casa". E, como se o destino realmente existisse, ele ganhou. Sozinho. Descontou a parcela de impostos e o restante aplicou em fundos de renda fixa. Na verdade, quem fez isso foi o advogado que ele contratou assim que soube o resultado. Cortou cabelo, escolheu roupa e foi pedir a moça em casamento. "Dava pra viver de renda". Só com aluguel de casa. "Daí dá tempo pra estudar".

Ela fez o que ele falou. Matriculou-se em uma faculdade particular. Foi fazer administração "porque alguém ia precisar cuidar desse dinheiro todo". Ele não. Ele foi comprar presente "pros parente de fora". Foi comprar o carro que sempre sonhou. E, no fim da tarde, foi atrás da cortina que ela pediu "pra combinar com o sofá marrom". O resultado é previsível. Ao fim de um ano, ele estava completamente desregrado, bebendo e gastando mais do que devia, mesmo para os que tem fortuna na casa dos milhões. Porque agora tinha carros potentes, porque agora era motel quase todo dia. E não era com ela. Porque agora a humildade era intelectual, muito mais feia que a mais feia humildade financeira.

O divórcio saiu rapidamente. A metade dela cresceu. O moral dela cresceu. A parte dele não resistiu à primeira enxurrada de lamentações pós-casamento. Deu-se à festa como quem se entrega ao suicídio. Seu moral diminuía à exata proporção de seus recursos. Pouco a pouco ela se restabeleceu. Conseguiu abrir uma firma que prestava consultoria empresarial. Casou-se novamente. Com o advogado que a ajudava a administrar o dinheiro que o primeiro marido insistia em queimar. Teve filhos, andava em um bom carro familiar, espaçoso, e ia vez ou outra ao motel para relaxar junto a seu amável esposo novo, pois "era só chamar a babá". Ele foi aos poucos deteriorando sua fortuna. passo a passo voltando ao estado de semi-miséria inicial. Nessa época, numa casa de penhores, conheceu uma moça humilde, mas feliz e bem feita de corpo. Passou a sair com ela. Eles iam caminhar na praça, ou de bicicleta, que era o único bem que lhe restou. Essa moça cabia bem na garupa.

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