domingo, 4 de maio de 2008

Juno e a necessidade do simples

O crescente e ininterrupto progresso tecnológico reinante na sociedade contemporânea reverberou há muito nas artes em geral. Andy Warhol pintou latas de sopa em conserva, George Orwell projetou um 1984 alucinado, e o Kraftwerk sintetizou eletronicamente todo o som. O cinema assistiu maravilhado a consolidação da ficção científica, através de filmes como 2001, Blade Runner, O Exterminador do Futuro e Matrix. A capacidade de se renovar tornou-se infinita. Tudo pode e, as aparências assim o dizem, foi tentado. Speilberg confessou o deslumbramento diante das monumentais cenas criadas nos épicos de David Lean; em contrapartida, abusou dos efeitos especiais, destronando o romantismo de outrora. Hoje em dia, tendo em vista a sede mercadológica, tudo deve ser grandioso, megalônamo. Mesmo os melhores filmes centrados na crise individual, tais como Sangue negro, Os sonhadores, Onde os fracos não têm vez, Crash, Amelie Poulin, etc., revestem-se de uma atmosfera grandíloqua. São produzidos de modo a, na maioria das vezes, arrebatar corações e mentes da platéia com explosões, contrastes cromáticos exacerbados, efeitos sonoros e especiais, gritos, tiros, roteiros não-lineares e músicas impactantes. Não é possível apostar que presenciemos o ocaso do cinema centrado no cotidiano tragicômico, que retira do simples o que comove, mas é cada vez mais raro encontrarmos um bom filme que não aposte no cataclismo.

Talvez em reação a isso, vez ou outra, somos brindados com verdadeiras obras-de-arte da simplicidade. Foi assim no ano passado, com Pequena miss sunshine, e agora com o maravilhoso Juno. Este, como aquele, é capaz de despertar em nós o desejo do ombro. A necessidade do outro. Não quero reputar ao filme um caráter evangelizador, que não tem. Sinto apenas que, tendo em si vida, o espectador é incapaz de deixar a sala de projeção sem ser tocado. Apostando em uma linguagem que jamais exagera, o filme despretensiosamente vai derrubando clichês de filmes família. A madrasta (Allison Janney) é uma mulher incrivelmente compreensiva. A gostosa da faculdade não é uma vadia (apesar de ter uma queda pelos professores), a menina grávida não precisa ser a coitadinha da escola. Parece uma preocupação clara da roteirista Diablo Cody: demonstrar que a vida não tem fórmulas prontas, e que é possível fazer rir e chorar sem apelar aos estereótipos sociais costumeiros. Prova disso está no resultado da relação entre a jovem Juno (Ellen Page) e o candidato a pai adotivo Mark (Jason Bateman). Sentimos a cada encontro entre eles que o beijo roubado é questão de tempo, e que os núcleos ruirão diante deste amor proibido. Mas o que seria uma solução padronizada, quando se olha para o cotidiano, torna-se algo dispensável e esse romance de ocasião dá lugar a um terceiro ato singelo e comovente.

O filme conta com uma segura direção de Jason Reitman, que aposta no olhar prudente e confia na força do roteiro. Traz uma trilha sonora maravilhosa e coerente com o fluxo narrativo, em que se destacam Belle & Sebastian, Cat Power, Velvet Underground, Kinks, Sonic Youth, entre outros. Mas esse belíssimo roteiro, a direção justa, e as belas canções, nada disso sustentaria a história sem um elenco que fosse - como já acontecera com Pequena Miss Sunshine - capaz de representar os tipos humanos mais reais e, por isso mesmo, comoventes e fortes. Destacam-se, além é claro de Ellen Page (impecável no papel central de uma dolescente grávida que não aceita a comiseração alheia), Michael Cera (o relutante e tímido adolescente que engravida a namorada sem querer); o sempre competente J. K. Simons (o pai da jovem, alternando momentos de austeridade e bondade na medida do real); o já citado Bateman (formando ao lado de Jannifer Garner um jovem casal muito verossímil em suas inseguranças, diferenças e na vontade de ter um filho). Só mesmo um grupo de atores tão coeso seria capaz de entoar frases banais de modo tão comovente.

E eu acho que é assim que se resumiria Juno: um filme capaz de entoar frases banais de modo comovente. Em determinado momento temos o diálogo: "seus pais devem estar se perguntando onde você está uma hora dessas", e a resposta "acho que não. eu já estou grávida. o que de pior poderia acontecer?". É esse o tom da obra, o deboche, o amor, o medo, a amizade, a compreensão, a afinidade e a dor podem ter a dimensão de um ombro, de uma lágrima. O amor pode ser bobo, sendo lindo. Só mesmo um filme assim, tornaria uma frase como "eu ainda guardo a sua calcinha" a mais singela declaração de amor. Lindo.

4 Resposta(s):

Juliana Caulfield disse...

lindo! amei o texto, zé. Conseguiu fazer jus à genialidade do filme.
e Juno é uma graça, e tem a trilha sonora mais perfeita que já vi em um filme atual :)

Unknown disse...

Se eu precisava de um empurrão barbaro para ter a vontade de ver o filme acabou de me jogar no chão.
O foda e não ter assistido ainda Pequena Miss Sunshine. sei, é terrível, mas ainda não assisti... providenciarei os dois.

Camila. disse...

Ah, esse texto ficou muito bom, e, com certeza, retrata o filme de forma muito simples e sincera, sem clichês, como é a obra em si. Realmente, ele e Pequena Miss Sunshine... Perfeito! ;-)

Cissa disse...

ai, eu quero muito ver esse filme. só tive referências boas dele. =)

=**

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