sábado, 26 de abril de 2008

Ilusão (Ato II, Cena I)

Ato I, Cena IV.

Abrem-se as cortinas. Sérgio e Ana estão na frente do palco à direita, com as poltronas lado a lado, como em um cinema, a única luz vai em direção ao rosto dos dois, como um projetor. Julio está no fundo à esquerda, com a poltrona de lado, ele parece conversar com alguém que está fora da cena.

Ana (pegando uma pipoca imaginária)

Não gosto de comédias-românticas, não sei por quê. Mas é uma merda. Não que eu esteja reclamando do filme que você escolheu

Júlio (enquanto Sérgio responde ao comentários de Ana com um aceno de cabeça aflito, mastigando pipoca)

Ah! Mãe, sabe como é. Esse negócio de cinema é enrolado mesmo. Tem que começar de baixo. Mas fica tranqüila. O quê? Sim. Sim. Ele é meu amigo, né.

Sérgio (Entre gargalhadas. Júlio finge falar com a mãe e gesticula)

Esse ator é demais, não é? (Ana se assusta). Eu gosto dele desde aquele filme que ele fez sobre os alunos CDFs na faculdade. Como é o nome?

Ana (incrédula)

Deu a louca nos Nerds...

Sérgio

Esse mesmo. Hahaha... Muito bom. Aquela cena do rapaz se masturbando depois de mexer com cola. Hahaha...

Ana

Calma Sérgio! Senão vão expulsar a gente daqui. (Sérgio calando-se assustado)

Júlio

Tudo bem mãe. Assim que eu tiver uma novidade eu te aviso... (olhando o relógio) O pai tá demorando. Ele não continua freqüentando aqueles pulgueiros depois do trabalho, né? (pausa). Igreja? Sei. Deixa de inocência, mãe!

Ana (levantando-se, seguida de Sérgio)

Ainda bem que acabou. Minha bunda já estava doendo. E aí? Gostou?

Sérgio (sem jeito)

Ah... achei legal...

Ana

Onde vamos comer? Tô com fome. Vamos numa lanchonete aqui do Shopping mesmo... pode ser?

Sérgio

Tá bom. Só quero comer alguma coisa.

Júlio (com ar impaciente)

Acho melhor a gente ir jantando. Aquele velho vai demorar. (sai pela esquerda empurrando a poltrona)

Ana (puxando Sérgio pelo braço)

Vem, logo então, gato. Preciso de perguntar uma coisa. (Sérgio parece se espantar)

Todos deixam o palco.

domingo, 6 de abril de 2008

Financiomas

Este é um conto de amor novo-burguês, le nouveau riche des histoires romatiques. Caminhavam de mãos dadas. Dispa-se a noção gloriosa dos que caminham por prazer e romantismo. Feito a falta de recursos, o namorico ia a pé, por não poder ir melhor, fizesse chuva, fizesse sol. E eles gostavam de ir a pé, como gostavam de não poder ir ao cinema porque a câmara-de-ar da bicicleta dele rasgou e, "agora o dinheiro era pra consertar, senão, não dá pra trabalhar amanhã cedo". Tinha que regular e controlar. Como não dava para se fazer muita coisa, sobrava tempo para os carinhos, só para os carinhos, "porque em casa não dá, minha vó tá lá e não tem dinheiro pro motel". E eles vão ficar no carinho, ou vão caminhar.

Um dia ele encasquetou que ia pôr garupa na bicicleta, agora com o pneu ajeitado. Mas a moça não era o que se pode chamar de um símbolo de beleza, e apesar da humildade, notava-se que comia bem, demais. E ela começou a reclamar que "estava doendo a bunda", e chegava aos destinos andando torto. Natural, três quartos dela ficavam para fora da bicicleta, esperando a gravidade fazer marcas vermelhas profundas. Ficava ridícula, digamos assim. O outro problema, é que se ela chegava vermelha e dolorida, ele também. O peso da bicicleta aumentou muito depois que ele instalou a garupa, que vazia era "até levinha". Uma gemendo de dor, o outro gemendo de cansaço, eram uma sensação onde quer que estivessem.

Ele ficou entre trocar o quilo de acém por patinho "só dessa vezinha", ou comprar um bilhete da federal. Como a carne "a gente amacia na pressão", vai de sorte mesmo. Escolheu a sua data de aniversário. E, romântico, a dela. 02-10-25-07. Faltam duas dezenas. 36-45. "O número de casa". E, como se o destino realmente existisse, ele ganhou. Sozinho. Descontou a parcela de impostos e o restante aplicou em fundos de renda fixa. Na verdade, quem fez isso foi o advogado que ele contratou assim que soube o resultado. Cortou cabelo, escolheu roupa e foi pedir a moça em casamento. "Dava pra viver de renda". Só com aluguel de casa. "Daí dá tempo pra estudar".

Ela fez o que ele falou. Matriculou-se em uma faculdade particular. Foi fazer administração "porque alguém ia precisar cuidar desse dinheiro todo". Ele não. Ele foi comprar presente "pros parente de fora". Foi comprar o carro que sempre sonhou. E, no fim da tarde, foi atrás da cortina que ela pediu "pra combinar com o sofá marrom". O resultado é previsível. Ao fim de um ano, ele estava completamente desregrado, bebendo e gastando mais do que devia, mesmo para os que tem fortuna na casa dos milhões. Porque agora tinha carros potentes, porque agora era motel quase todo dia. E não era com ela. Porque agora a humildade era intelectual, muito mais feia que a mais feia humildade financeira.

O divórcio saiu rapidamente. A metade dela cresceu. O moral dela cresceu. A parte dele não resistiu à primeira enxurrada de lamentações pós-casamento. Deu-se à festa como quem se entrega ao suicídio. Seu moral diminuía à exata proporção de seus recursos. Pouco a pouco ela se restabeleceu. Conseguiu abrir uma firma que prestava consultoria empresarial. Casou-se novamente. Com o advogado que a ajudava a administrar o dinheiro que o primeiro marido insistia em queimar. Teve filhos, andava em um bom carro familiar, espaçoso, e ia vez ou outra ao motel para relaxar junto a seu amável esposo novo, pois "era só chamar a babá". Ele foi aos poucos deteriorando sua fortuna. passo a passo voltando ao estado de semi-miséria inicial. Nessa época, numa casa de penhores, conheceu uma moça humilde, mas feliz e bem feita de corpo. Passou a sair com ela. Eles iam caminhar na praça, ou de bicicleta, que era o único bem que lhe restou. Essa moça cabia bem na garupa.

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