sábado, 29 de março de 2008

Qual é seu Hobby preferido?

Quando aquilo que deveria ser o nosso descanso vira mote para auto-cobranças insuportáveis, é sinal de que perdemos a noção fundamental de "diversão". O homem que gosta de futebol, mas chuta mal, gosta de ler mas não escreve bem, gosta de música e não sabe o que é sustenido, pode, apesar de tudo, se divertir jogando, escrevendo, tocando. Se, em revide, nos entristecemos por encontrar um resultado aquém da genialidade, é porque não entendemos que nossa função social é outra, ou porque sonhamos em ser alguém que não somos. Ou seja, um excelente médico não deve querer que seu passe de canhota esteja à altura de sua precisão clínica. Caso contrário, seu lazer e sua chance de extravasar minimamente uma rotina estressante perdem-se em meio a encanações que sequer deveriam ter existido.

Se damos vazão a cobranças indevidas, em lugar de nos alegrarmos com o bom cumprimento de nosso papel, perdemos de vista as nossas inúmeras qualidades, em detrimento de possíveis defeitos provocados (entre outras coisas) por uma falta de determinada aptidão. Nada mais natural. Ninguém é bom em tudo, e saber escolher o caminho certo é a primeira das virtudes necessárias para a felicidade. Muitas pessoas são obrigadas a desistir muito tarde de um sonho quando, se orientadas a tempo, poderiam estar colhendo já os frutos da correta opção. Jogadores, muitas vezes, passam por vários clubes antes de descobrirem que os milhões da profissão estão muito mal distribuídos. Felizmente para os escritores de boteco e músicos de garagem o desgaste é menor. O que os permite levar uma vida dupla, a dos sonhos (ainda que sem o glamour desejado) e a real (que dá dinheiro).

Podendo ganhar dinheiro e sobreviver de outra forma (às vezes até com luxos), os músicos de garagem podem aproveitar para se divertir. Tendo como viver por outros meios, o escritor de boteco se diverte criando e mantendo blogs. E é nesse clima de completa displicência que, muitas vezes, os blogs e bandinhas "sem-fins-lucrativos" acabam ironicamente lucrando. Foi por serem felizes clinicando, administrando, ensinando, servindo, limpando e arquivando, que muitos puderam ser felizes tocando e escrevendo. Além é claro dos falsos jogadores que peladeam aos fins de tarde sem pretensão de encantar. Ainda assim, vale lembrar que muitos gênios musicais de hoje tiveram, um dia, alguém que os ensinou matemática, que os serviu um bom jantar, ou que os vacinou. Grandes futebolístas têm toda a carreira na mão de empresários, fisiologistas, fisioterapeutas, ortopedistas, motoristas, seguranças. Escritores, se assim o são, é porque alguém um dia os ensinou o "ABC", ensinou-os a colocar palavra ante palavra, a dizer e não dizer.

terça-feira, 18 de março de 2008

Ilusão (Ato I, Cena IV)

Ato I, Cena III.

Toca o Telefone de Sérgio, sua poltrona agora foi deslocada para a frente do palco no centro.

Ana (entrando, no fundo, à direita do palco, na poltrona)

Sérgio? É a Ana. Liguei só pra saber como você estava. Nem deu tempo de conversar direito lá no restaurante. (Júlio vai entrando e se sentando na poltrona ao fundo do palco, à esquerda)


Júlio (sentado de costas - Sérgio vai se recompondo, assustado)

Um conhaque, por favor. (Retira papéis do bolso e começa a fazer anotações, sempre dando goles num copo imaginário)

Sérgio

Então. Tô bem... mas sabe como é. Difícil conversar em paz com o Júlio por perto. Ele quer resolver tudo de uma hora pra outra. (Ana assente com a cabeça, rindo) A gente podia conversar a qualquer hora, só nós dois, sei lá... Falar sobre a vida. Que você acha?

Ana

Sim... claro. Amanhã o Júlio vai para o Rio ver a mãe. A gente podia aproveitar par tomar um chopp, ir ao cinema...

Sérgio

Legal! Por mim, ótimo. Assim a gente não precisa falar desse filme... Eu tô empolgado, sabe? Mas preciso dar um tempo. Me concentrar em outras coisas...

Ana (Enquanto Júlio faz gestos de quem pede a conta e paga)

Entendo. Concordo com você... Até pras idéias fluírem, não é? (Júlio empurra a poltrona para longe do palco e finge chamar um taxi... Sai pela esquerda)

Sérgio

Pois é. Por aí... Seguinte: que tal amanhã no mesmo lugar?

Ana

Prefiro algo informal. Vamos comer numa lanchonete, depois a gente pega um cinema. Pode ser?

Sérgio (Com Júlio voltando e cueca, carregando a poltrona)

Por mim tudo bem. (Júlio se deita)

Ana

Só uma coisa, Sérgio: Não diz nada pro Júlio... Acho que ele está meio afim de mim... Andou dizendo umas coisas. Ele pode achar que não respeito o que ele diz. Ah! Você sabe... ele é meio estourado.

Sérgio

Tudo bem. Pode deixar... Mas não tem nada de mais. Vamos só sair pra conversar.

Ana (Rindo)

É Sérgio. É... então até amanhã. Beijos.

Sérgio (Sem entender a risada)

Beijo pra você. Até amanhã

Os dois desligam o telefone e se deitam. Agora, os três dormem. Sobe uma música lenta, embalando o sono. e aos poucos vai aumentando. Fecham-se as cortinas. Fim do Ato I.


terça-feira, 4 de março de 2008

Subjetivo

Mesmo nos textos em que a primeira pessoa mais aparece, o artista procurou sempre o impessoal. Sua vida era boa, portanto isenta de literariedade. Boa vida em literatura é dor e mágoa, sentimentos dos quais o artista há muito não se queixava. Eis por que esse texto pouco diz. Porque a arte é paradoxo. É impossível pôr-se a escrever sobre si mesmo quando se está em um estado eufórico de vida, nesse caso vive-se, e isso basta. No entanto, ante a tristeza o artista se vê nu e inconseqüente e, se escreve, não vai além das alegrias falsas que os outros não querem ouvir. Ou seja, é preciso estar são para dizer tristezas, enquanto se vive a alegria. E estando triste, a tristeza salta das páginas contadas para fazer parte da vida, e nesse caso, nem se vive, nem se escreve: sofre-se.

Se é confuso, paradoxal, contraditório, assim é por ser vida pulsante. O artista, instância desnatural, é no fundo homem como nós, sente como nós. Tendo diante de si uma pedra no meio do caminho, o artista procura superá-la. Se o caminho é sem percalços, não há mal em criar, em poema, uma pedra que desgaste a retina, visto que a vida vai tranquila e não exige esforços. Assim, na dupla missão de viver e escrever, o artista sempre põe a tristeza para fora, seja sofrendo, seja verbalizando.

Posto isso, é natural que o texto pouco diga, pois esse Zé(ds), narrador e eu-lírico de um certo José, não pode externar tristeza fingida enquando a mão que escreve, a do poeta e autor, está mais preocupada em externar a verdadeira. Sendo assim, Zé(d's) vai deixar por esses dias a literatura de lado, vai tentar deixar o mundo cósmico dos elementos literários para salvar seu patrão. O patrão é o José, que no exato momento em que realiza as mais promissoras vitórias profissionais, tem por dentro um coração de pedra, no caminho, estilhaçado.


(atualização em 09/03/08)
Já passou, já passou
Se você quer saber
Eu já sarei, já curou
Me pegou de mal jeito
Mas não foi nada, estancou

Já passou, já passou
Se isso lhe dá prazer
Me machuquei, sim, supurou
Mas afaguei meu peito
E aliviou
Já falei, já passou

Mas já passou, já passou
Recolha o seu sorriso
Meu amor, sua flor
Nem gaste o seu perfume
Por favor
Que esse filme
Já passou

(Chico Buarque)

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