domingo, 15 de junho de 2008

Manipulação

Começou quando a esposa insistiu na contratação daquela jovem. Acaso têm os jovens efeitos inebriantes? Era de se esperar o resultado. Ele, 45 anos, corpo de 43 com malhação, rico e bonito. Ela, 17 anos, corpo de 17 com malhação, pobre e desinibida. Os primeiros passos foram sorrateiros, como convém quando se quer testar o terreno. Ela passava fingindo desatenção, deixando cair o espanador bem próximo dele, abaixava-se para pegar tomando o cuidado de esbarrar seu quadril no dele, que fingia examinar discos antigos na sala de estar. Depois, vieram os comentários, “nossa, o senhor deve se exercitar bastante, né seu João?”, “gostei do novo corte de cabelo, seu João”. Daí ao flerte despudorado, foram dois ou três olhares desejosos, “duvido o senhor me dá um beijo aqui e agora, o senhor não tem coragem”. Ante a negativa (ele queria, mas não devia), ela apelou “se o senhor não me dá um beijo eu digo pra sua mulher que o senhor anda se esbarrando em mim de um jeito estranho, ela vai ficar uma fera”.

O casamento que fosse para os diabos, agora era com ele, “menina nova não brinca assim comigo”. Homem não tem jeito, aperta que espana. Mas, e isso ele lembrou logo, o sexo tinha se tornado algo casual, praticado religiosamente às sextas-feiras depois da novela. Fazia-se de qualquer jeito e dormia-se muito. “Será que eu dou conta de uma moça assim? Será que eu ainda levo uma garota à loucura? Será?”. Só pagando para ver.

A coisa toda se programou de telefonemas e bilhetes escondidos. Quinta. Ele sairia mais cedo. Ela não iria trabalhar, combinaram um bar afastado, que se freqüentava de gente pouco observadora. E então o motel mais afastado. E assim foi. Aqui entrariam algumas linhas a respeito do resultado entre quatro paredes, mas não faria qualquer diferença para a história. Na saída, o problema: a irmã de sua mulher resolvera levar o novo namorado ao mesmo motel, no mesmo dia, apenas 23 minutos mais tarde.

Claro está o final dessa história. A moça perdeu o emprego, a que ela jamais deu o devido valor, suas intenções eram outras. Resta-nos o senhor João. Diante desse absurdo, a coisa toda nunca fica impune. Advogado famoso na cidade, o caso correu de ouvido em ouvido todo o pequeno município. Os clientes começaram a rarear. Mas esse era problema menor. Com o tempo a fofoca desaquece. O problema foi em casa mesmo. Terminou quando a esposa insistiu na assinatura do divórcio.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Zílio

Quando em meio a papéis sem assinatura e borderôs sem carimbo, uma moça se aproximava visivelmente mais preocupada em discutir os valores de sua apólice de seguros, Zílio suava a fronte branca de homem de escritório. Odiava sem saber o porquê. Tinha um ódio enorme de se saber tímido o suficiente para um primeiro contato com qualquer pessoa do sexo oposto, burro o suficiente para um galantear qualquer, feio o suficiente. Zílio é como eu e você. Só um pouco mais humano, mais honesto, mais tímido, mais burro e mais feio. Se ele soubesse que assim são muitos corações que se disfarçam em rapinante. Creia Zílio, a vida não é realmente algo que compensa a paga de viver.

Apenas Zílio por nome. Jamais se dera ao duelo de morte que o levaria ao fim certo. Aquele ser ignoto das gentes vivera recôndito dentro do mundo. Uns, de pronto, chamariam mentira; outros, melindrados, não acreditariam que pudesse brotar entre as gentes tão honesta figura. Um homem simples que nunca quis ser além de um passageiro de vida, medíocre. Vez ou outra sonhara um sonho amalucado de ser feliz. Mas não é dado ao humano ser feliz. Isso ele aprendera fácil. Aprendera quando descobriu que seria sozinho no mundo. Para sempre.

A única palavra que lhe valera algo em vida foi essa: honestidade. E a ignorância alheia insistiu em nomear estupidez. Zílio não dá passo em falso, não quer o do outro. Sequer imaginava ser de direito o que era seu, por direito: a própria vida. Colocou sempre em mãos diversas o destino que só a ele pertencera. Pobre homem que não falha, o que já é falha grave. Tomou mais um gole antes de pagar mais do que deveria de conta e gorjeta. Percebeu que chovia ainda, adiantou-se até a beira da rua e deu sinal ao táxi. Hora de voltar, obviamente sozinho, ao lar.

Zílio era bom para a família, por isso ninguém lhe dava o devido respeito. Então ser bom é errado nesse mundo? É isso que se recebe por não querer além do próximo metro? Olhavam-no com o devido cuidado, um estranho ser de carne e osso que o mais disparatado espectro ultrapassaria em credibilidade. Não. Não é possível que exista coisa assim num mundo como o nosso. Um homem que trabalhe honestamente, e viva honestamente, insira-se no mercado consumidor honestamente, que honestamente chore em comédias românticas no cinema vazio. Se Zílio entendesse de artes-plásticas, música ou futebol, talvez tivesse consolo. Mas ele é outro.

domingo, 4 de maio de 2008

Juno e a necessidade do simples

O crescente e ininterrupto progresso tecnológico reinante na sociedade contemporânea reverberou há muito nas artes em geral. Andy Warhol pintou latas de sopa em conserva, George Orwell projetou um 1984 alucinado, e o Kraftwerk sintetizou eletronicamente todo o som. O cinema assistiu maravilhado a consolidação da ficção científica, através de filmes como 2001, Blade Runner, O Exterminador do Futuro e Matrix. A capacidade de se renovar tornou-se infinita. Tudo pode e, as aparências assim o dizem, foi tentado. Speilberg confessou o deslumbramento diante das monumentais cenas criadas nos épicos de David Lean; em contrapartida, abusou dos efeitos especiais, destronando o romantismo de outrora. Hoje em dia, tendo em vista a sede mercadológica, tudo deve ser grandioso, megalônamo. Mesmo os melhores filmes centrados na crise individual, tais como Sangue negro, Os sonhadores, Onde os fracos não têm vez, Crash, Amelie Poulin, etc., revestem-se de uma atmosfera grandíloqua. São produzidos de modo a, na maioria das vezes, arrebatar corações e mentes da platéia com explosões, contrastes cromáticos exacerbados, efeitos sonoros e especiais, gritos, tiros, roteiros não-lineares e músicas impactantes. Não é possível apostar que presenciemos o ocaso do cinema centrado no cotidiano tragicômico, que retira do simples o que comove, mas é cada vez mais raro encontrarmos um bom filme que não aposte no cataclismo.

Talvez em reação a isso, vez ou outra, somos brindados com verdadeiras obras-de-arte da simplicidade. Foi assim no ano passado, com Pequena miss sunshine, e agora com o maravilhoso Juno. Este, como aquele, é capaz de despertar em nós o desejo do ombro. A necessidade do outro. Não quero reputar ao filme um caráter evangelizador, que não tem. Sinto apenas que, tendo em si vida, o espectador é incapaz de deixar a sala de projeção sem ser tocado. Apostando em uma linguagem que jamais exagera, o filme despretensiosamente vai derrubando clichês de filmes família. A madrasta (Allison Janney) é uma mulher incrivelmente compreensiva. A gostosa da faculdade não é uma vadia (apesar de ter uma queda pelos professores), a menina grávida não precisa ser a coitadinha da escola. Parece uma preocupação clara da roteirista Diablo Cody: demonstrar que a vida não tem fórmulas prontas, e que é possível fazer rir e chorar sem apelar aos estereótipos sociais costumeiros. Prova disso está no resultado da relação entre a jovem Juno (Ellen Page) e o candidato a pai adotivo Mark (Jason Bateman). Sentimos a cada encontro entre eles que o beijo roubado é questão de tempo, e que os núcleos ruirão diante deste amor proibido. Mas o que seria uma solução padronizada, quando se olha para o cotidiano, torna-se algo dispensável e esse romance de ocasião dá lugar a um terceiro ato singelo e comovente.

O filme conta com uma segura direção de Jason Reitman, que aposta no olhar prudente e confia na força do roteiro. Traz uma trilha sonora maravilhosa e coerente com o fluxo narrativo, em que se destacam Belle & Sebastian, Cat Power, Velvet Underground, Kinks, Sonic Youth, entre outros. Mas esse belíssimo roteiro, a direção justa, e as belas canções, nada disso sustentaria a história sem um elenco que fosse - como já acontecera com Pequena Miss Sunshine - capaz de representar os tipos humanos mais reais e, por isso mesmo, comoventes e fortes. Destacam-se, além é claro de Ellen Page (impecável no papel central de uma dolescente grávida que não aceita a comiseração alheia), Michael Cera (o relutante e tímido adolescente que engravida a namorada sem querer); o sempre competente J. K. Simons (o pai da jovem, alternando momentos de austeridade e bondade na medida do real); o já citado Bateman (formando ao lado de Jannifer Garner um jovem casal muito verossímil em suas inseguranças, diferenças e na vontade de ter um filho). Só mesmo um grupo de atores tão coeso seria capaz de entoar frases banais de modo tão comovente.

E eu acho que é assim que se resumiria Juno: um filme capaz de entoar frases banais de modo comovente. Em determinado momento temos o diálogo: "seus pais devem estar se perguntando onde você está uma hora dessas", e a resposta "acho que não. eu já estou grávida. o que de pior poderia acontecer?". É esse o tom da obra, o deboche, o amor, o medo, a amizade, a compreensão, a afinidade e a dor podem ter a dimensão de um ombro, de uma lágrima. O amor pode ser bobo, sendo lindo. Só mesmo um filme assim, tornaria uma frase como "eu ainda guardo a sua calcinha" a mais singela declaração de amor. Lindo.

sábado, 26 de abril de 2008

Ilusão (Ato II, Cena I)

Ato I, Cena IV.

Abrem-se as cortinas. Sérgio e Ana estão na frente do palco à direita, com as poltronas lado a lado, como em um cinema, a única luz vai em direção ao rosto dos dois, como um projetor. Julio está no fundo à esquerda, com a poltrona de lado, ele parece conversar com alguém que está fora da cena.

Ana (pegando uma pipoca imaginária)

Não gosto de comédias-românticas, não sei por quê. Mas é uma merda. Não que eu esteja reclamando do filme que você escolheu

Júlio (enquanto Sérgio responde ao comentários de Ana com um aceno de cabeça aflito, mastigando pipoca)

Ah! Mãe, sabe como é. Esse negócio de cinema é enrolado mesmo. Tem que começar de baixo. Mas fica tranqüila. O quê? Sim. Sim. Ele é meu amigo, né.

Sérgio (Entre gargalhadas. Júlio finge falar com a mãe e gesticula)

Esse ator é demais, não é? (Ana se assusta). Eu gosto dele desde aquele filme que ele fez sobre os alunos CDFs na faculdade. Como é o nome?

Ana (incrédula)

Deu a louca nos Nerds...

Sérgio

Esse mesmo. Hahaha... Muito bom. Aquela cena do rapaz se masturbando depois de mexer com cola. Hahaha...

Ana

Calma Sérgio! Senão vão expulsar a gente daqui. (Sérgio calando-se assustado)

Júlio

Tudo bem mãe. Assim que eu tiver uma novidade eu te aviso... (olhando o relógio) O pai tá demorando. Ele não continua freqüentando aqueles pulgueiros depois do trabalho, né? (pausa). Igreja? Sei. Deixa de inocência, mãe!

Ana (levantando-se, seguida de Sérgio)

Ainda bem que acabou. Minha bunda já estava doendo. E aí? Gostou?

Sérgio (sem jeito)

Ah... achei legal...

Ana

Onde vamos comer? Tô com fome. Vamos numa lanchonete aqui do Shopping mesmo... pode ser?

Sérgio

Tá bom. Só quero comer alguma coisa.

Júlio (com ar impaciente)

Acho melhor a gente ir jantando. Aquele velho vai demorar. (sai pela esquerda empurrando a poltrona)

Ana (puxando Sérgio pelo braço)

Vem, logo então, gato. Preciso de perguntar uma coisa. (Sérgio parece se espantar)

Todos deixam o palco.

domingo, 6 de abril de 2008

Financiomas

Este é um conto de amor novo-burguês, le nouveau riche des histoires romatiques. Caminhavam de mãos dadas. Dispa-se a noção gloriosa dos que caminham por prazer e romantismo. Feito a falta de recursos, o namorico ia a pé, por não poder ir melhor, fizesse chuva, fizesse sol. E eles gostavam de ir a pé, como gostavam de não poder ir ao cinema porque a câmara-de-ar da bicicleta dele rasgou e, "agora o dinheiro era pra consertar, senão, não dá pra trabalhar amanhã cedo". Tinha que regular e controlar. Como não dava para se fazer muita coisa, sobrava tempo para os carinhos, só para os carinhos, "porque em casa não dá, minha vó tá lá e não tem dinheiro pro motel". E eles vão ficar no carinho, ou vão caminhar.

Um dia ele encasquetou que ia pôr garupa na bicicleta, agora com o pneu ajeitado. Mas a moça não era o que se pode chamar de um símbolo de beleza, e apesar da humildade, notava-se que comia bem, demais. E ela começou a reclamar que "estava doendo a bunda", e chegava aos destinos andando torto. Natural, três quartos dela ficavam para fora da bicicleta, esperando a gravidade fazer marcas vermelhas profundas. Ficava ridícula, digamos assim. O outro problema, é que se ela chegava vermelha e dolorida, ele também. O peso da bicicleta aumentou muito depois que ele instalou a garupa, que vazia era "até levinha". Uma gemendo de dor, o outro gemendo de cansaço, eram uma sensação onde quer que estivessem.

Ele ficou entre trocar o quilo de acém por patinho "só dessa vezinha", ou comprar um bilhete da federal. Como a carne "a gente amacia na pressão", vai de sorte mesmo. Escolheu a sua data de aniversário. E, romântico, a dela. 02-10-25-07. Faltam duas dezenas. 36-45. "O número de casa". E, como se o destino realmente existisse, ele ganhou. Sozinho. Descontou a parcela de impostos e o restante aplicou em fundos de renda fixa. Na verdade, quem fez isso foi o advogado que ele contratou assim que soube o resultado. Cortou cabelo, escolheu roupa e foi pedir a moça em casamento. "Dava pra viver de renda". Só com aluguel de casa. "Daí dá tempo pra estudar".

Ela fez o que ele falou. Matriculou-se em uma faculdade particular. Foi fazer administração "porque alguém ia precisar cuidar desse dinheiro todo". Ele não. Ele foi comprar presente "pros parente de fora". Foi comprar o carro que sempre sonhou. E, no fim da tarde, foi atrás da cortina que ela pediu "pra combinar com o sofá marrom". O resultado é previsível. Ao fim de um ano, ele estava completamente desregrado, bebendo e gastando mais do que devia, mesmo para os que tem fortuna na casa dos milhões. Porque agora tinha carros potentes, porque agora era motel quase todo dia. E não era com ela. Porque agora a humildade era intelectual, muito mais feia que a mais feia humildade financeira.

O divórcio saiu rapidamente. A metade dela cresceu. O moral dela cresceu. A parte dele não resistiu à primeira enxurrada de lamentações pós-casamento. Deu-se à festa como quem se entrega ao suicídio. Seu moral diminuía à exata proporção de seus recursos. Pouco a pouco ela se restabeleceu. Conseguiu abrir uma firma que prestava consultoria empresarial. Casou-se novamente. Com o advogado que a ajudava a administrar o dinheiro que o primeiro marido insistia em queimar. Teve filhos, andava em um bom carro familiar, espaçoso, e ia vez ou outra ao motel para relaxar junto a seu amável esposo novo, pois "era só chamar a babá". Ele foi aos poucos deteriorando sua fortuna. passo a passo voltando ao estado de semi-miséria inicial. Nessa época, numa casa de penhores, conheceu uma moça humilde, mas feliz e bem feita de corpo. Passou a sair com ela. Eles iam caminhar na praça, ou de bicicleta, que era o único bem que lhe restou. Essa moça cabia bem na garupa.

sábado, 29 de março de 2008

Qual é seu Hobby preferido?

Quando aquilo que deveria ser o nosso descanso vira mote para auto-cobranças insuportáveis, é sinal de que perdemos a noção fundamental de "diversão". O homem que gosta de futebol, mas chuta mal, gosta de ler mas não escreve bem, gosta de música e não sabe o que é sustenido, pode, apesar de tudo, se divertir jogando, escrevendo, tocando. Se, em revide, nos entristecemos por encontrar um resultado aquém da genialidade, é porque não entendemos que nossa função social é outra, ou porque sonhamos em ser alguém que não somos. Ou seja, um excelente médico não deve querer que seu passe de canhota esteja à altura de sua precisão clínica. Caso contrário, seu lazer e sua chance de extravasar minimamente uma rotina estressante perdem-se em meio a encanações que sequer deveriam ter existido.

Se damos vazão a cobranças indevidas, em lugar de nos alegrarmos com o bom cumprimento de nosso papel, perdemos de vista as nossas inúmeras qualidades, em detrimento de possíveis defeitos provocados (entre outras coisas) por uma falta de determinada aptidão. Nada mais natural. Ninguém é bom em tudo, e saber escolher o caminho certo é a primeira das virtudes necessárias para a felicidade. Muitas pessoas são obrigadas a desistir muito tarde de um sonho quando, se orientadas a tempo, poderiam estar colhendo já os frutos da correta opção. Jogadores, muitas vezes, passam por vários clubes antes de descobrirem que os milhões da profissão estão muito mal distribuídos. Felizmente para os escritores de boteco e músicos de garagem o desgaste é menor. O que os permite levar uma vida dupla, a dos sonhos (ainda que sem o glamour desejado) e a real (que dá dinheiro).

Podendo ganhar dinheiro e sobreviver de outra forma (às vezes até com luxos), os músicos de garagem podem aproveitar para se divertir. Tendo como viver por outros meios, o escritor de boteco se diverte criando e mantendo blogs. E é nesse clima de completa displicência que, muitas vezes, os blogs e bandinhas "sem-fins-lucrativos" acabam ironicamente lucrando. Foi por serem felizes clinicando, administrando, ensinando, servindo, limpando e arquivando, que muitos puderam ser felizes tocando e escrevendo. Além é claro dos falsos jogadores que peladeam aos fins de tarde sem pretensão de encantar. Ainda assim, vale lembrar que muitos gênios musicais de hoje tiveram, um dia, alguém que os ensinou matemática, que os serviu um bom jantar, ou que os vacinou. Grandes futebolístas têm toda a carreira na mão de empresários, fisiologistas, fisioterapeutas, ortopedistas, motoristas, seguranças. Escritores, se assim o são, é porque alguém um dia os ensinou o "ABC", ensinou-os a colocar palavra ante palavra, a dizer e não dizer.

terça-feira, 18 de março de 2008

Ilusão (Ato I, Cena IV)

Ato I, Cena III.

Toca o Telefone de Sérgio, sua poltrona agora foi deslocada para a frente do palco no centro.

Ana (entrando, no fundo, à direita do palco, na poltrona)

Sérgio? É a Ana. Liguei só pra saber como você estava. Nem deu tempo de conversar direito lá no restaurante. (Júlio vai entrando e se sentando na poltrona ao fundo do palco, à esquerda)


Júlio (sentado de costas - Sérgio vai se recompondo, assustado)

Um conhaque, por favor. (Retira papéis do bolso e começa a fazer anotações, sempre dando goles num copo imaginário)

Sérgio

Então. Tô bem... mas sabe como é. Difícil conversar em paz com o Júlio por perto. Ele quer resolver tudo de uma hora pra outra. (Ana assente com a cabeça, rindo) A gente podia conversar a qualquer hora, só nós dois, sei lá... Falar sobre a vida. Que você acha?

Ana

Sim... claro. Amanhã o Júlio vai para o Rio ver a mãe. A gente podia aproveitar par tomar um chopp, ir ao cinema...

Sérgio

Legal! Por mim, ótimo. Assim a gente não precisa falar desse filme... Eu tô empolgado, sabe? Mas preciso dar um tempo. Me concentrar em outras coisas...

Ana (Enquanto Júlio faz gestos de quem pede a conta e paga)

Entendo. Concordo com você... Até pras idéias fluírem, não é? (Júlio empurra a poltrona para longe do palco e finge chamar um taxi... Sai pela esquerda)

Sérgio

Pois é. Por aí... Seguinte: que tal amanhã no mesmo lugar?

Ana

Prefiro algo informal. Vamos comer numa lanchonete, depois a gente pega um cinema. Pode ser?

Sérgio (Com Júlio voltando e cueca, carregando a poltrona)

Por mim tudo bem. (Júlio se deita)

Ana

Só uma coisa, Sérgio: Não diz nada pro Júlio... Acho que ele está meio afim de mim... Andou dizendo umas coisas. Ele pode achar que não respeito o que ele diz. Ah! Você sabe... ele é meio estourado.

Sérgio

Tudo bem. Pode deixar... Mas não tem nada de mais. Vamos só sair pra conversar.

Ana (Rindo)

É Sérgio. É... então até amanhã. Beijos.

Sérgio (Sem entender a risada)

Beijo pra você. Até amanhã

Os dois desligam o telefone e se deitam. Agora, os três dormem. Sobe uma música lenta, embalando o sono. e aos poucos vai aumentando. Fecham-se as cortinas. Fim do Ato I.


terça-feira, 4 de março de 2008

Subjetivo

Mesmo nos textos em que a primeira pessoa mais aparece, o artista procurou sempre o impessoal. Sua vida era boa, portanto isenta de literariedade. Boa vida em literatura é dor e mágoa, sentimentos dos quais o artista há muito não se queixava. Eis por que esse texto pouco diz. Porque a arte é paradoxo. É impossível pôr-se a escrever sobre si mesmo quando se está em um estado eufórico de vida, nesse caso vive-se, e isso basta. No entanto, ante a tristeza o artista se vê nu e inconseqüente e, se escreve, não vai além das alegrias falsas que os outros não querem ouvir. Ou seja, é preciso estar são para dizer tristezas, enquanto se vive a alegria. E estando triste, a tristeza salta das páginas contadas para fazer parte da vida, e nesse caso, nem se vive, nem se escreve: sofre-se.

Se é confuso, paradoxal, contraditório, assim é por ser vida pulsante. O artista, instância desnatural, é no fundo homem como nós, sente como nós. Tendo diante de si uma pedra no meio do caminho, o artista procura superá-la. Se o caminho é sem percalços, não há mal em criar, em poema, uma pedra que desgaste a retina, visto que a vida vai tranquila e não exige esforços. Assim, na dupla missão de viver e escrever, o artista sempre põe a tristeza para fora, seja sofrendo, seja verbalizando.

Posto isso, é natural que o texto pouco diga, pois esse Zé(ds), narrador e eu-lírico de um certo José, não pode externar tristeza fingida enquando a mão que escreve, a do poeta e autor, está mais preocupada em externar a verdadeira. Sendo assim, Zé(d's) vai deixar por esses dias a literatura de lado, vai tentar deixar o mundo cósmico dos elementos literários para salvar seu patrão. O patrão é o José, que no exato momento em que realiza as mais promissoras vitórias profissionais, tem por dentro um coração de pedra, no caminho, estilhaçado.


(atualização em 09/03/08)
Já passou, já passou
Se você quer saber
Eu já sarei, já curou
Me pegou de mal jeito
Mas não foi nada, estancou

Já passou, já passou
Se isso lhe dá prazer
Me machuquei, sim, supurou
Mas afaguei meu peito
E aliviou
Já falei, já passou

Mas já passou, já passou
Recolha o seu sorriso
Meu amor, sua flor
Nem gaste o seu perfume
Por favor
Que esse filme
Já passou

(Chico Buarque)

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Ilusão (Ato I, Cena III)

Ato I, Cena II.

Enquanto Ana e Júlio fingem conversar, Sérgio volta de pijama, carregando a poltrona e se senta no fundo, de costas para os outros dois, retira um telefone do bolso e começa a falar.

Sérgio

Não Mãe, eu não entrei porque estava cansado, falei pro pai... Precisava vir pra casa, tomar banho. No Domingo eu faço uma visita...

Júlio (enquanto Sérgio ouve o que sua mãe diz)

Eu não aguento mais o Sérgio, Ana. Ele não fala coisa com coisa, vive às custas do pais... Parece que tem quinze anos.

Ana


Gosto da inocência dele.

Júlio

Babaquice é o nome disso... No começo eu dava risada, mas tem hora que estressa! Tô pronto pra (soltando o volante e fazendo o gesto com os dedos, de aspas) "demitir" ele, se dá pra falar isso.

Enquanto se vê Ana com cara de desaprovação e argumentando em voz baixa, Sérgio continua:

Fica tranqüila, mãe. Eu e o Júlio estamos vendo uma coisa bem legal, dessa vez vai... O quê?... Claro que eu confio nele, mãe. Tá doida? O cara é meu amigo faz o quê? Dez anos? Então... A gente tá junto nessa.

Ana

Digo e repito! Não é certo isso. O Sérgio é um cara legal (enquanto no fundo Sérgio gargalha).

Sérgio (Falando e rindo)

Tá me chamando de veado? Que isso, mãe? Eu gosto é de mulher... Aliás, conheci uma garota incrível. Educada, bonita,. acho que vou convidá-la pra sair... Quê?... Ah! Chama Ana...

Júlio (estacionando o "carro")

Posso subir um pouco? Estou sem sono e...

Ana (Rindo e saindo do "carro")

Eu sei o que você quer... Entra! Tem camisinha?

Júlio (saindo também)

Tenho (abrindo a carteira)... Só uma coisa, não fala nada pro Sérgio desse nosso "esqueminha", hein. Acho que ele gosta de você... sei lá. O jeito que ele te olha...

Ana (Enternecida)

A que bonitinho, o Sérgio?! Sabe que eu nem reparei?


Os dois retiram-se pela esquerda carregado as poltronas. Sérgio desliga o telefone, empurra sua poltrona para o lado direito do fundo do palco e se deita sobre ela.


Ato I, Cena IV.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Das raízes sólidas

- Seu namorado é um bunda mole!
- Por quê?
- Onde já se viu? Deixar a mina sair sozinha?
- Cala a boca!
- É sério! Se fosse eu, não tinha disso não. Tá cheio de cara por aí que não agüenta ver uma mina sozinha e já pula em cima.
- Por isso que você não arruma ninguém. Seu ogro!
- Fala a verdade...
- Quê que tem? Pra dar certo tem que confiar, né?
- Besteira. E tem mais... O problema não o que a mina faz... é o que os caras fazem... ficam cercando. Chega a dar raiva, porra! Eu sinto raiva por você... por você e pelo banana do Cláudio.
- Ele não pediu pra você me vigiar. E nem eu pedi. Então pára com esse negócio que já tá ficando chato! Cadê aquele garçom?
- O que eu tô querendo dizer é que, se gosta mesmo, tem que cuidar, caralho!
- Pára, Ivan!
- Mas Juliana...
- Garçom! Me traz uma tequila, por favor...
- Sim. Já trago.
- Mas... Você ficaria tranqüila se o Cláudio saísse sozinho?
- Claro! Se eu não acreditasse nele, não teria porque ficar. Ou teria?
- Sei lá. Tem gente que namora só pra não ficar sozinho.
- Com a gente não é assim. Tô com ele porque gosto. E ele também...
- Traz uma Skol pra mim, moço...
- A gente não trabalha com Skol. Serve Antártica...
- Tá gelada?
- Muito...
- Pode ser então.
- Já venho.
- Mas então, Ju... Eu sei o que você tá dizendo... Só que eu não acredito nessas coisas de confiança... Nada a ver, meu!
- Você vai morrer solteiro.
- Haha!
- Fica rindo, fica... Moço, já pode trazer a conta...
- Sim, senhora.
- Vamos embora?
- Vamos... Não agüento mais discutir com você...
- Porque você sabe que eu estou certo.
- Cada um pensa o que quer. Eu e o Cláudio... A gente não liga pro que os outros dizem. Por isso que dá certo.
- Faça o quiser...
- Exato.
- Vamos pra minha casa?
- Pode ser. Mas vamos pegar cigarro antes... Vai ter alguém lá?
- Não... Ninguém... O Alex foi pra Guarulhos, e o Marcelo está trabalhando essa noite.
- Ótimo. Eu morro de vergonha dos seus amigos...
- É porque você não consegue fazer nada em silêncio...
- Cala a boca!
- Hahaha! Tá aqui, moço... Fica com o troco.
- Obrigado.
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Image Hosted by ImageShack.usLerdo tem uma enorme dificuldade para entender os humanos. Mas não adianta dizer-lhe que isso é natural. "Nem nós humanos nos entendemos", eu expliquei certa vez, mas não adiantou. E ele insiste que esses diálogos tão corriqueiros merecem alguma notoriedade. Diz que é história das boas. Pobre furgão. Ele não sabe que há certas coisas que todo mundo já conhece.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Desvios sanados

Criacionistas diriam que o que nos diferencia dos outros animais são a semelhança e a imagem de Deus impregnadas em nós. Evolucionistas rebateriam atestando que a oposição está ligada à evolução do cérebro humano para o estado de consciência e saber, que suplanta a mera reação instintiva. E estando certos ou errados, há algo mais importante a se discutir. Independendo da teoria adotada, é preciso que se estabeleça as reais medidas dessas diferenças entre humanos e irracionais. Sendo, nós, seres de uma natureza outra (divina ou biológica), seria de se supor que responderíamos de maneiras diversas às constantes exigências mundanas. Se a explicação vale em determinados casos, há outros em que as semelhanças são tantas que é de se duvidar realmente do abismo entre razão e instinto tão costumeiramente considerado.

O psicólogo americano Skinner, embasado em teorias comportamentalistas clássicas, desenvolveu uma frutífera psicologia behaviorista, segundo a qual os humanos, como demais seres vivos, agem a partir de impulsos externos, produzindo uma resposta específica a cada exigência do meio. Disso para as notórias conclusões acerca da psicologia "prêmio & punição" é um passo. Em outras palavras, é natural que os homens ajam de acordo com as necessidades impostas (incluindo-se aqui as vontades do patrão, do professor, dos pais, etc.), sempre que forem presenteados com benefícios específicos nas atitude correta e castigados com a severidade conveniente quando agirem em desacordo com que foi proposto pelos dominantes. Nada muito diferente dos ratos laboratoriais que aprendem a não se coçar após alguns choques e a rebolar em rodinhas para consegui alimento.

Pedagogos, humanistas e psicanalistas consideram um disparate que essa teoria seja ainda aceita na sociedade pós-moderna em que vivemos. Julgam haver um enorme vão entre as atitudes do rato e a do homo-sapiens. Afirmam que é impossível descaracterizar o poder da mente (ou espírito) nas resoluções tomadas pelos indivíduos, e que, aceitando o behaviorismo, estaríamos retrocedendo e desconsiderando a evolução psicológico-social apresentada pela humanidade. No entanto, nem eu, nem qualquer outro freudiano é capaz de ver a mente, fotografar o inconsciente, dialogar com o Ego. Já as ações, essas saltam aos olhos. As contradições teóricas são aceitáveis. Mas "contra fatos, não há argumentos".

Qualquer cidadão que passou por um banco de escola no Brasil, já se deparou com os inúmeros recursos empregados pelos professores para conseguir controlar uma sala de aula. Não há melhor metáfora para o par "prêmio x punição" que os inúmeros "positivos" e "negativos" que preenchem os diários de classe dos mestres. Aliemos a isso outras experiências em sala de aula, como a ameça de ter sua nota diminuída em se persistindo o barulho. É o comportamento, e apenas ele. E as ameaças. Um prisioneiro que não se cala ante os destratos em uma penitenciária é advertido com uma semana em uma cela solitária "para ter tempo de pensar e repensar suas atitudes indevidas". Um operário receia participar de movimentos de greve sobre pena de perder seu cargo para um outro indivíduo mais suscetível aos desmandos do chefe, e aos baixos salários. Etc.

Não se trata aqui de discutir em que medida essas ações bloqueiam apenas as atitudes externas dos indivíduos. Poder-se-ia argumentar que essas ameaças possuem uma carga psicológica muito maior que aquela impressa no organismo. Não duvido. Mas seria, então, o caso de se pensar que os ratos de laboratório possuem também uma enorme carga psicológica para além dos movimentos instintivos! Não se trata disso. Sabe-se, por experiência, que uma vez retirado das gaiolas, e colocados em um ambiente que os prevaleça e em que não haja choques ou rodas, os ratos perdem, num curto espaço de tempo, os condicionamentos a que foram submetidos. Eis a diferença que até aqui não se esclarecia. Nós, os humanos, guardamos na consciência ou na alma (dependendo da filiação teórica) toda e qualquer situação desumana, destituída de moralidade e que, por isso obviamente, nos prejudicou. Uns o fazem para se vingar no momento propício, outros, para que os mesmos "erros" não sejam cometidos, e a dor não retorne. Seja por vingança, seja por medo, nós tendemos a não aceitar bem qualquer providência exterior que teime em nos tratar apenas como animais.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Ilusão (Ato I, Cena II)

Ato I, Cena I.

Entra Ana pela esquerda carregando uma mesa. Coloca-a entre as poltronas e senta-se à direita. Retira da bolsa um pequeno castiçal e o deposita sobre a mesa.

Ana (falando a um garçom imaginário)

Osvaldo, uma cerveja por favor.

Júlio e Sérgio entram pela esquerda. Um carrega a cerveja e os copos e o outro empurra mais uma poltrona. Cumprimentam a garota e sentam-se. Sérgio no meio. Todos comerão uma comida fictícia, pratos vazios.

Ana

Vocês demoraram, eu que é deveria ser a última a chegar. Odeio ficar esperando.

Sérgio

Deixa de frescura. O que são cinco ou dez minutos?

Júlio

A gente pensou em mandar o roteiro pro Fernando Meireles. Será que ele dá uma ajuda?

Ana

Parece uma boa idéia. Quer dizer, não sei... Está pronto? Posso dar uma olhada? (E pegando o texto entregue por Júlio) "Braços Atados"? Mas que nome ridículo! Parece aquelas crises do Almodovar. Não era pra ser uma comédia?

Sérgio (Falando como se estivesse com a boca cheia)

E é... eu também não concordo com esse nome. Preferia algo como "Deu a louca no Professor!" (Limpando a boca). Bom... eu já tô atrasado. Preciso devolver o carro pro meu Pai. (Deixando uma nota sobre a mesa e beijando o rosto de Ana). Tchau, gente. (Para Júlio) Me liga amanhã, cara. Um abraço. (Sai arrastando sua poltrona)

Júlio (Falando baixo, como se contasse um segredo)

Viu aquilo? "Deu a louca no professor"! Você acredita naquele cara? Ele só me dá trabalho. Se eu estivesse sozinho nessa, esse filme já tinha saído?

Ana (Rindo)

Deixa isso pra lá. Você me dá uma carona? Não quero voltar de táxi a essas horas. (Júlio acena com a cabeça enquanto termina de mastigar).

Os dois levantam-se, retiram a mesa do palco com todos os objetos. Viram as poltronas para frente e sentam-se. Júlio à direita, finge dirigir um carro. Volta a música - eles aparentam conversar.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Desfazer-se

O escritor é um ser carnal. Pode haver, é claro, momentos de incrível inspiração, mas é humano. E sendo assim, hora ou outra volta-lhe a necessidade mais que natural de sentir o normal dos homens, sentir-se apenas. O escritor torna-se incapaz de fugir de si mesmo, de sua literariedade, para voltar a ser aquele indivíduo que aporta o mundo com a obrigação única de deixá-lo. E quando assim ocorre, percebe que sua incapacidade está ligada não ao estilo que adotou, mas ao medo do comum, do simples, do apenas. Esse medo, é bom que se diga, torna-o superficial nas conclusões, no falar, no agir, pois adota para si uma postura anti-natural. Sentado em um mesa de bar, discutindo futebol, o escritor desenterra arte, pseudo-arte. É incapaz de argumentar ordinariamente. Está contaminado. Triste escritor que está doente.

Sendo assim, ao ler o que escrevem os seres de carne e osso (melhores portanto, pois têm vida), o escritor se desespera. Serei eu capaz de um pensar fluido assim? É possível escrever ainda como em uma conversa informal de amigos, de familiares, e ainda assim dizer tudo o que deve ser dito? Serei capaz da simplicidade? É provável que não. Pois todas essas minhas indagações, se eu não fosse escritor contaminado, seria resumidas de um modo muito mais belo: "eu queria fazer assim também"! Mas não consigo, ou melhor "a capacidade do singelo me abandonou pelos desvios". Pseudo-literariedade, pseudo-vida. Triste escritor que não vive.

Percebe-se claramente que o que se discute é a dicotomia existente entre "simples" e "literário". O que não parece óbvio é que os seres amam a maneira de dizer do escritor, mas não sabem que o escritor já se cansou, e prefere o comum, pois o comum é a seu modo a mais literária forma de agir, de pensar, de escrever, enfim. Mas só ele não consegue fazê-lo e vai olhar para aquela simplicidade que desenterra de si e dizer que é falsa, não é a simplicidade natural dos homens, aquela que deixa os corações e mentes sadios e nos brinda com o cotidiano de quem vive, vida de verdade, escrita de verdade. Triste escritor que não escreve.

Então, quando não há o que fazer, e o escritor morre por dentro ao ver amigos cada vez mais simples e cada vez melhores, escreve uma crônica que não é simples, pois não sabe ser. Os amigos dirão que ele está louco, que seu estilo é único e libertário. Lúdico! Onírico! Maravilha e arte. E se assim não disserem é porque são simples. Talvez repitam "Muito Bom Escritor" e serão lindos! Só o escritor não é. Porque só consegue ver no que diz as artimanhas que a vida lhe incutiu, os joguetes de beleza falaciosa, de teatro de escrever. O escritor é triste sim. Diz as coisas desdizendo. Triste escritor que não é simples.

Dito de outra forma.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Fausto e seus fantasmas

Voltar para casa de madrugada por aquela rua era sempre um martírio. Mesmo de carro. Um lugar sombrio, desértico. Sempre pensava no pior, Fausto, natureza pessimista. Pensava que algo sempre daria errado. Medo. Como quando viu de longe uma luz que lembrava a de um farol de uma moto, mas muito próxima ao chão, e estática. Sem meios para dar a volta, resolver acelerar, qual nada. Já na terceira marcha percebeu claramente que não se enganara, era de fato uma moto, caída, e um corpo deitado ao lado, movendo-se com lentidão. Pensou em parar, mas o temor de que se tratasse de uma cilada era enorme. Resolveu passar bem devagar, observando todas as sombras, e já preparado para uma arrancada, se necessário fosse. Ao passar ao lado da cena, pôde perceber uma moça, baixa estatura, pois quase toda encoberta pela moto, uma 100 cilindradas de pequeno porte. Os cabelos parecias sujos, constatação óbvia, pois estavam esparramados pelo chão. Nesse momento percebeu que a moça tentava se levantar, sempre olhando fundo na direção de seus olhos. Ainda com o carro em movimento, e com uma coragem injustificável, resolveu tentar contato:
– Tudo bem aí, moça?
– Bem num tá, né?

Diante da voz dolorida, seu medo dissipou-se. Resolveu parar o carro e descer. Não sem antes assegura-se de que havia trancado tudo. Caminhou desconfiado, sem ao menos perceber que vestia apenas um short minúsculo que usava para dormir e uma regata não menos ridícula. Parado a poucos passos da moça, pergunta:
– Consegue dar partida?

– Eu tô bêbada, moço!
A voz e os olhos não negavam. Mas ele estava mais preocupado era em justificar aparência tão cômica:
– Eu fui levar meu irmão à rodoviária. Como você pode ver. Nem trouxe o celular. E...
– Celular eu tenho aqui. Problema não. É que eu moro sozinha. E se eu chamar um táxi, onde vou deixar essa moto? A senhor encosta ela pra mim ali?
Nessa hora, em que ele estava tentando levantar a moto, sentiu-se novamente desprotegido, e o medo voltou. Mal controlava as própria pernas. Tremia tanto que parecia que o bêbado era ele. Não conseguia sequer ativar o "ponto-morto", para poder manobrar. A garota aparentava, pelo jeito de se vestir, ser muito humilde, daquelas que batalham por salário mínimo e chama as colegas de loja de "amigas".
– Para onde você estava indo, moça?
– Pra zona sul, ué.
A resposta fez a pergunta parecer evidente demais. Ela deve ter imaginado que, ao vê-la de perto, com roupas humildes, maquilagem nenhuma, uma motocicleta já velha, qualquer um pudesse supor que ela morava na zona sul. Onde moram os pobres. Parecia, pelo modo como a resposta chegou a seus ouvidos, que ali o preconceito era dela, como se não suportasse a própria condição. De pobre e de bêbada. Passando vergonha às 2 da manhã. Mas sabia a pobre coitada que o envergonhado ali era ele, pelos trajes e pelo tremor que não mais passava.
– Aceita um cigarro?
– Vô aceitá sim.
– O que você vai fazer?
– Vô tentar chegar assim mesmo.
– A moto continua funcionado?
– Sabe que eu não sei. Você pode ver pra mim?
– Claro...
Cada resposta soava desafiadora. Era um covarde, assumidamente medroso. Era notório que se alguém fosse tentar alguma coisa contra ele, já o teria feito. Percebeu que o que incomodava não era a possibilidade de ser assaltado. O que parecia machucá-lo de verdade era ter que confrontar novamente aquela miséria da zona sul. Da qual ele já tinha se livrado há alguns anos, quando conseguiu uma promoção e mudou-se daquele fim de mundo. Era dolorido rever os bêbados, os pobres. Doía sentir medo de assalto, como doía ter que ficar ali prestando ajuda. Esse problema não era dele.
– Bom, moça. Já vou indo. Se cuida, hein. E vê se vai com cuidado, por favor.

– Eu vou sim. Obrigado, e vá com Deus.
– Que ele te guie.
Jogou a bituca no chão, entrou correndo no carro e partiu jurando fazer qualquer que fosse o caminho para não ter que voltar àquela rua.
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Image Hosted by ImageShack.usLerdo passava por uma rua estranha, quando chegava de uma viagem. Só queria descansar confortavelmente em sua garagem. Mas ao ver um rapaz arrastando uma moto com dificuldades e uma moça que parecia sentir bastante dor, parou para oferecer ajuda.Só teve tempo de ouvi-los conversando.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Ensaio sobre a ausência

No minuto em que Mara prometeu a si própria que jamais deixaria aquele banheiro estava selado o destino de todos os povos. Fosse apenas não deixá-lo, os problemas não atingiram tão desmesurada forma, porque seria uma resolução solitária, sem qualquer chance de afetar o cosmos ou sequer a própria familia já acostumada às insólitas decisões da jovem. O que não sabiam os próximos é que a garota resolveu propagandear malfadada atitude. É natural que tenhamos impulsos os humanos, e aqui a silepse confirma apenas minha posição de contador, minha não vivência carnal, ainda que a atitude afete a mim e a meus pares de modo indireto. Nós narradores dependemos quase inteiramente da boa vontade e da busca incessante pela história perfeita que perpassam as mentes autorais, e sem elas nada somos. Contudo, a história é sobre Mara e apenas ela agirá, como fez ao convidar para testemunho integral os jornalistas ordinários, que se aventurassem pelas improprabilidades cotidianas, e que quisessem, de modo a aumentar audiência por vias escusas, atestar o indizível. Indizível sim, tal foi o gesto da garota. E sua idéia tresloucada era que as demais mulheres em idade fértil sentissem como por magia o mesmo impulso pouco ajuizado de não mais entregar-se ao mundo. E o mistério maior é saber que o projeto alcançou dia após dias mais seguidoras, até que não restasse no mundo que se conhece uma só mulher que voluntariamente se entregasse ao ato sublime da procriação. Porque ficou claro pelas regras estabelecidas por Mara, já quase uma nova messias, que ninguém além da própria mulher poderia entrar no banheiro selecionado para o claustro, o que fez com que grávidas desavisadas fosse obrigadas a esperar o parto terminar antes da viagem à solidão. Algumas mais engenhosas criaram inclusive sistemas de ventilação e passagem de alimentos que vedassem qualquer homem mal intencionado de forçar a entrada no desespero do coito há muito cessado. Pronto e feito o destino, em cerca de 100 anos, que é idade já passada para se morrer, toda a humanidade estaria acabada, salvo um ou outro relutante em vias de deixar a vida resistindo ao fim óbvio, que sejam então 120 anos. Era esse o tempo que o homem ainda teria para terminar uma história que até o desvario mariano parecia eternamente interminável, mas não era. E agora, passados mais de 90 deles, eu, seu narrador, apresso-me a deixar esse relato ao limbo, visto que os leitores são já escassos e enxergam mal. Poucos acreditariam-me não fosse a constatação de andar-se à rua e não encontrar alma viva a perambular, restando poucas senhoras ainda em banheiros, que a uma dieta respeitável passam já a marca centenária e teimam em lá permanecer não fazendo a sua e as próximas vidas. O que ainda é pouco sabido, visto que os poucos sabedores já desabitaram esse lado da fábula sem questão de a história transmitir, é que Mara, dias antes de vir a falecer, deixou seu condenável gesto de lado para passar os últimos dias a caminhar pelos quintais de sua própria casa, talvez na tentativa de revigorar os pulmões após anos e anos a respirar o odor muito desagradável de que tem fama os banheiros. Se nunca sobre isso se falou, foi porque a nossa protagonista pediu às poucas testemunhas oculares que guardasse segredo sobre esse último e já mais compreensível gesto. Não queria passar por covarde, ou pessoa sem palavras. E foi assim...
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Image Hosted by ImageShack.usLerdo esteve recentemente em São Paulo carregando materiais para a filmagem de um certo Blindness. Lá conheceu um senhor José que diz ter escrito a história daquele filme. O senhor respirava com dificuldades, mas foi capaz de contar essa história com uma vivacidade incrível.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Novos Projetos!

É isso aí! Ano novo, blog novo. Já está no ar o projeto coletivo "Depósito de Idéias" (do qual faço parte)! Uma reunião de vários blogueiros de regiões diferentes do país, discutindo temas novos a cada dez dias. Para começar, a impressão de cada blogueiro sobre sua própria cidade. Uma maneira de conhecê-los, e começar a se acostumar com suas maneiras de escrever. Não deixe de visitar, clicando AQUI.
PS.: Visitem também os blogs pessoais!
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Já está também no ar meu novo blog (de poesias): Verbo e Rima. Não deixem de visitar. Poemas novos e reutilizados a partir da Comunidade "Toalha de Rosto" do orkut.

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