
Já é noite escura. Dessa mesa, o pouco que vejo é seu corpo minguado atirar para o lado que aponta. Por quê? Que estranha é essa necessidade de se ter alguém? Embebido em promiscuidade e carinhos passageiros. Uma garota se aproxima. Sozinha. Ele oferece uma cadeira. Um copo. Aproxima a boca feia do ouvido. A cena é ridícula. Não pelo que diz. Não escuto. Mas pelo rosto enfadado da moça. E pela diferença quase cômica de altura. Se recostasse um pouco mais, julgaria por miopia que um filho quer a atenção da mãe. E não deixa de sê-lo. Pelo menos assim parece. Um ser pequeno e solitário. Como o são quase todos os que, desprovidos de qualidades físicas, apelam a uma retórica de conquista. Que não funciona, pois não domina.
Troveja alto. Esqueço a cena por um momento, embora com olhos fixos para aquele lado. Peço outra cerveja. Esboço um retrato no guardanapo. Não sei se por cansaço ou falta de interesse. Certo é que congelo a cena e tento expressá-la em traços leves, ruins na verdade. Sou atrapalhado pelo constante balançar do corpinho desesperado. E pelo recostar-se, fugir, da garota. Acuada a um canto que parece único. O que ela ainda faz ali, desconfortável? Não é como andar na chuva – e agora chove fino – em uma rua larga e sem cobertura. Quero levantar-me. Não para o aparte. O que me constrange e agora aflige é que a infeliz não some. Não arreda. Dá esperanças que não existem a um garoto que dela necessita, ao que parece. Queria não estar aqui. Mas não posso lutar contra a vontade de saber o desfecho. Talvez para um dia poder contar a história inteira. Aquele rosto de desprezo. Aquele rosto...
A chuva aumenta, não posso mais sair, ou não quero. Peço algo para comer. Outra cerveja. A luta continua. A moça não muda. O rapaz, esse sim, parece tentar outra coisa. Afasta o corpo. Pede duas bebidas. Bebe rápido. Parece comigo, quando as palavras faltam e vou ariscar-me na embriaguês. “Parece comigo”. É quando isso me vem à cabeça que percebo toda a atração da cena. Vejo-me de fora. Vejo-me naquele eterno sussurrar infrutífero de sempre, de quem não sabe o que faz. Começo a reparar mais na moça, já que do rapaz adivinho todos os atos. A cara de enfado aos poucos se dissipa. Ela começa a falar. Agora é ele quem não reage. Gestos amplos, sorrisos e goles. Dialogam enfim, o clima é ameno. E aquele ímpeto inicial? Onde estará?
A chuva diminui, percebo. Ele pede a conta e paga tudo. Ela não esboça qualquer reação contrária ao gesto, parecia antevê-lo. De repente se levantam. Sorriem, dão-se as mãos e saem, sem nada dizer. Pude ouvir uma risada espontânea já na porta. Com certeza o rapaz pensa que conseguiu, enfim. Mas aquilo me incomoda ainda. O que terá ele dito? Feito? Como foi que se deu? Dirijo-me ao balcão. Chamo o barman que os atendia. Questiono: “conhece aquele dois?”, “sim, casados, vem sempre aqui”, “discutiam?”, “besteiras, coisas do trabalho deles, sempre passam aqui antes de ir pra casa”. E foi como se o meu dia piorasse. A chuva acaba. Reconheço que o problema está em mim. Eu sempre junto à minha solidão. Pago a conta e saio pensando: “sou mesmo um idiota”.
6 Resposta(s):
Acho que vou passar um tempo lendo seus textos, se incomoda?
Gostei muito =)
de maneira alguma
É por se espelhar de mais. Sabe como, né? A gente é tão engraçado e sabe tão pouco, ainda mais ou pseudo antropólos, que sempre tenta analisar pela identificação, quando, na verdade, a probabilidade do cara pensar como vc, ainda mais à distância, ainda mais sem ter relação nenhuma contigo, é quase improvável.
E seguimos, chutando e errando sempre, pra ver se numa hora dessa a gente acerta e fala, viu?! Eu sabia!
Vim atraída pelo: aguarde novidades! E saio pensando se serão as letras a controlarem o álcool ou este a inspirar aquelas...
a cris é um anjo!
Este texto me dá sempre uma agonia estranha, sei lá, parece que você estava tão imensamente triste...
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